Paletas

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

PARTIDA

Miguel partiu assim como chegou, com olhos vermelhos (agora de choro), metido em roupas elegantes se não estivessem amarrotadas e com aquele mesmo papo doce e encatandor com que viera quando apareceu. Eu estava no mesmo lugar de sempre, namorando a Francisco Pontes nos meus horários de costume, debruçado no parapeito de minha janela que, por sua sorte, sentia diariamente os perfumes das mocas que andavam pela calçada.


Logo me dei conta que ao fundo vinha um sujeito franzino em cujo vulto se destacava a brasa do cigarro da boca. Não foi déjà vu, foi tudo exatamente como o início. A campanhia tocou, atendi e lá estava Miguel, estampando profunda e cortante tristeza no rosto. Fitei-o por uns segundos à espera de alguma manifestação que me desse pistas sobre sua lucidez. Ele estava sobriamente bem, ebriamente triste. Miguel partiria ao bater das 0h.

Dei-lhe a mão e voltei ao posto no parapeito. Em meio aos flertes da Francisco Pontes, recordei a figura que bateu nesta espelunca e me puxou ao botequim em plena segunda-feira para contar, em versos retos, parte de sua vida. Eram versos retos de uma poesia extremamente torta. Seu lado mais dionisíaco, talvez por vergonha, Miguel omitiu. De qualquer forma, minha acolhida foi mal retribuída com uma certa sensação de traição.

A parte que Miguel nos escondeu ele nos revelou no tempo em que esteve na 105 da Chico. Os comentários que regou com goladas generosas de cerveja, fez todos os dias sem exceção. Fê-los com cerveja, whisky, conhaque, cachaça, temperando seus pitacos com doses extravagantes de álcool. Logo, Vinícius, que por seu intermédio conheci, começou a ficar desinteressante quando era mencionado aos soluços de malte.

Nem mesmo a Francisco Pontes manteve seu encanto, Miguel repeliu as maravilhas que afloravam nossa calçada mal cuidada e os amores que me distraíam aos fins de tarde. Essa minha rua que ficou mal vista tudo por causa de um rapaz disfarçado nos discursos de Vinícius.

Ofereci-lhe um café antes da partida. Aceitou. Molhou os lábios e aproveitando a doçura da bebida, arriscou manifestar arrependimento. "Lamento meus tropeços, Fernando. Saiba que foi um prazer conhecê-lo".

Cumprimentei-o sensibilizado. Miguel apanhou a maleta de couro encardido e pôs o pé errante na calçada da Chico. Da janela, vi-o desaparecer no breu; Miguel fumava e tinha nas mãos uma garrada de cachaça.

Um comentário:

Nina Vieira disse...

Também eu estou sentindo a partida de muitos dos que amo. Despedida dói, mas, às vezes, parece o correto.