Paletas

sábado, 19 de junho de 2010

MORTE DO ANTI-CRISTO

Foi como se o alfabeto perdesse uma letra. Assim foi a morte dele, padecido pela idade, mas ainda jovial no ofício de escritor. A experiência se disfarçava numa narrativa pouco paulatina, irrefreável, inovadora, atrevida e universalmente legível, até porque deixou de lado aquelas frescuras antiquadas do tempo em que farmácia era com "ph".



A quem apreciava seu tom descrente da pureza humana, certamente foi uma perda doída. Bem verdade, muitos choraram, outros soltaram rojões. Ao contrário da maioria das mortes, de onde derivam lutos duradouros, veio comemoração de instituições que guardavam rancor pelo defunto, em cujas obras não as poupava nem um pouco de críticas agressivas.


Em casa de beatas, o seu nome não era só mal quisto; era a quem apelavam quando, por idas e vindas da vida, descompensavam com os terços que rezavam nas horas vagas. Ao invés das orações, trocaram-nas pela leitura de nosso querido morto, por excelência um contador de barbaridades que até Deus duvida.

Mas o morto matou Deus sem muito esforço. Em suas produções sempre encontramos textos carregados de ceticismo e, muitas vezes, tão realistas que teimamos em não querer reconhecer a verdade nua e crua. Talvez por isso despertou cólera, por ser tão transparente, árido, inescrupuloso e valente, em razão de enfrentar a força de seus perseguidores.


Na semana, perdemos a letra agnóstica de nosso alfabeto, coroada pelos mais altos tributos em literatura, sem mesmo nos despedir daquele que ensaiou um mundo cego esquecido por Deus. Nosso autor não quis deste regaço que nega, criação do homem para preencher lacunas que não soube explicar. Nosso autor preferiu confessar a ignorância a inventar fantasias.


Está morto, tanto quanto o deus que matou. Não quis flores no cortejo, tampouco uma sepultura. Quis que o corpo fosse consumido em fogo, e suas cinzas espalhadas pelo pedaço de chão lusitano que mais amou.


Embora odiado, as beatas no fundo sofrerão com seu falecimento. As beatas, seus amantes e inimigos... Perseguidores acharão que a guerra está ganha na ilusão de que a morte do autor pontuou seu fim. Nosso defunto deixou, no entanto, legado em registros. Isto será o suficiente para mantê-lo vivo, tornar sua voz ainda audível nos textos tão vazios do sacro e tão repletos do real bruto. Ao escrever, todos sentirão a falta da letra que morreu.

10 comentários:

Juliana Bragança disse...

oie! pois é, fiquei bem tristinha com a morte dele! mas ela chega pra todo mundo! pelo menos ele deixou um legado...

Mac Gayver disse...

Caro Ricardo,

nem sei se "A experiência se DISFARÇAVA numa narrativa[...]"

Pressuponho, de maneira ingênua, que a experiência de Saramago era, por demais, escancarada em seus romances. Pode-se sentir isso ao primeiro toque em O Homem Duplicado, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim.

Ele escancarava também a sua realidade nua e crua, por isso me dispertei com: "Em suas produções sempre encontramos textos carregados de ceticismo e, MUITAS VEZES, TÃO REALISTAS que teimamos em não querer reconhecer a verdade nua e crua." Não sei se Saramago vivia num mundo tão fantasioso, por assim dizer.

Encerro este meu simples ponto de vista, deixando uma frase do grande:
"Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro."

Ricardo Chapola (CHAPS) disse...

Caro Mac,

sou um pouco suspeito em discutir de Saramago com vc, a despeito de certo conhecimento que tenho do autor. Já li algumas de suas obras, dentre elas "Ensaio sobre a cegueira" e outra cujo lançamento consagrou seu nome, o "Memorial do convento".

Nesses dois livros, localizo uma tendência extremamente realista. Saliento inclusive alguns trechos nos quais Saramago apela, de uma forma mais leve, a uma escatologia herdada da escolha realista.

Tome alguns exemplos do realismo, que pretendem sempre mostrar traços humanos ofuscados por costumes que não os deixam expressar. No realismo, o autor elimina estes empecilhos e desvenda uma essência humana mais próxima de uma origem animal.

Tente observar isto em livros feitos por Eça de Queirós, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia... E compare-os com José Saramago, veja que há influência Vi indícios mais fortes no "Ensaio sobre a cegueira".

A verdade dói, Mac. Como eu mesmo lhe digo, por exemplo, sobre as teorias freudianas, afronto-as devido a esta barreira cultural minha. E por isto resisto em não aceitá-las. Mas homem é animal e animais se comportam feito um, salvo o humano que encontrou a cultura para barrar nossos impulsos animais.

Saramago ignora estes obstáculos e enxerga os humanos do mesmo nível que vê qualquer outro ser. Somos superiores em razão de sermos reprimidos.

Mac Gayver disse...

Você não entendeu o que eu quis transmitir.

Parcialmente, o que posso afirmar, novamente, é que Saramago mostrava, sem cobertas ou disfarces (como preferir) a verdade nua e crua, ou seja, valoriza(ou) o que se é. Segundo ele, isso era um dos seus estímulos para escrever.

Para encerrar, deixo-te uma pergunta: Você sente Saramago como um narrador que mantém uma certa distância quando escreve?

Ricardo Chapola (CHAPS) disse...

Mostra mesmo a verdade NUA E CRUA. Foi o q eu tentei dizer no meu texto.

E respondendo a sua pergunta, não me sinto distante quando o leio. Aliás, creio que ninguém se sinta, em função de ele travar conosco uma leitura bem prosaica, leve, fluente. E seu caráter excêntrico atrai, de algum modo incita identidade com o leitor.

Abraços

Mac Gayver disse...

Não perguntei se você se sente distante. Perguntei se você sente Saramago como um narrador que mantém uma certa distância quando escreve?

Abraço.

Ricardo Chapola (CHAPS) disse...

Não. Ele é próximo...

Por isso ser tão adorado também

Anônimo disse...

Pontuou mesmo o seu fim. Ele, que nem gostava de pontos finais ao término de um diálogo.
Esse vai deixar muita saudade. Era (é), meu escritor predileto.

Mac Gayver disse...

O próprio Saramago explicava: “a pontuação é uma convenção. Existem línguas que não a usam, mas mesmo assim os que as falam entendem o que lêem. Quando falamos, não usamos pontuação.”

No twitter um fã (@chonnye)escreveu: "Os livros dele tinham um ritmo sobre o qual nenhum outro escritor alguma vez consguiria chegar perto ou duplicar".

Senator disse...

Não é de bom tom censurar pessoas recentemente falecidas, principalmente se famosas.

Confesso que nunca consegui ler as obras de Saramago. Primeiro, por sua aversão à abertura de novos paragrafos, transformando as páginas em "paredes gráficas", nada convidativo à leitura.O autor lusitano tambem não gostava de ponto final. Seu texto era uma avalanche de associações e ideias, sem a menor preocupação de ordem, coerência e pontuação.

Lamentei que Saramago, um autor que, embora inteligente e mentalmente corajoso, deixava para o leitor a importante tarefa de ordenar seu pensamento.

Não obstante ao exposto, sou capaz de reconhecer e admirar sua coragem, sinceridade e senbilidade com o sofrimento dos menos favorecidos.